sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

O meu inter-rail; 1º capítulo: "60 contos"


Levado pela mistura de estupidez e curiosidade característica dos 20 anos também eu fiz um inter-rail. Foi já no século passado mas, tal como escritores, ensaístas e intelectuais diversos já tiveram oportunidade de explicar recorrendo à utilização de palavras bonitas, deverá existir um intervalo de tempo entre os acontecimentos e a reflexão sobre os mesmos que, a não ser respeitado, poderá acarretar graves prejuízos à qualidade do produto final do exercício reflexivo. Decidi em consciência, e após cuidada análise, que esse intervalo de tempo termina agora. Dou assim por iniciada a tarefa de reflectir sobre o meu inter-rail, expondo ao mesmo tempo, num malabarismo arriscado, os frutos dessa reflexão.

O muro de Berlim tinha sido derrubado há praticamente 10 anos quando dei início aos 13 497 km (número inventado agora mesmo mas que não deve andar muito longe da verdade) que iria percorrer sentado, deitado ou em pé, a bordo de três dezenas de diferentes comboios europeus (outro número inventado agora mesmo e que, uma vez mais, não deve andar muito longe da verdade). Se falo do muro de Berlim e da sua queda espalhafatosa, tal não se deve a mais do que ao habitual desejo do ser humano de contextualizar os episódios marcantes da sua vida em relação aos episódios marcantes da história da humanidade. Poderia ter referido o assassinato do arquiduque Francisco Fernando em Sarajevo (muito afastado no tempo, não seria credível), os primeiros passos de Neil Armstrong na Lua (muito afastado no espaço, não seria credível), o início da destruição total e irreversível das finanças portuguesas pelo governo de António Guterres (totalmente credível mas muito afastado do conceito de episódio marcante da história da humanidade) ou a libertação de Nelson Mandela da prisão Victor Verster, um típico acontecimento do género pretendido e que se encontrava no raio de acção espácio-temporal adequado mas que não teve a sorte de ser escolhido por mim. Fica para a próxima.

O objectivo da viagem era visitar com algum detalhe a cidade de Istambul e o triângulo que, com o habitual bom gosto, os operadores turísticos baptizaram de “Circuito das Capitais Imperiais”, ou “Odisseia na Europa de Leste”, ou outras merdas parecidas de requinte semelhante. Refiro-me naturalmente a Praga-Viena-Budapeste sendo que, se considerarmos Viena como uma cidade da Europa de Leste, deveremos considerar Madrid como capital da Europa Central e a Costa da Caparica como estância de veraneio da América Latina. Mas isto é divagação e urge retomar o raciocínio. Passar 3 ou 4 dias em cada uma dessas quatro capitais (sim, já sei que a capital da Turquia é Ankara mas isso agora não interessa nada; sim, também sei que em português se escreve Ancara  mas isso ainda interessa menos) era aquilo que se pretendia com o investimento inicial de 60 contos (dizem que é o equivalente a 300 euros na moeda actual mas eu tenho sérias dúvidas desse facto), preço aproximado do bilhete que permitia viajar por toda a Europa durante um mês e que foi totalmente financiado pelos meus pais. Falo em investimento e não em gasto devido à existência de uma forte expectativa de retorno do valor em causa através da aquisição de vastos conhecimentos culturais por parte da minha pessoa, conhecimentos esses que enriqueceriam o meu curriculum para fins de mercado de trabalho num valor largamente superior ao despendido. Esta teoria, que se mostrou posteriormente como completamente falsa, foi por mim vendida ao meu pai (a minha mãe compra tudo o que lhe vendo à confiança) com toda a convicção e sem qualquer sombra de má-fé, pelo que não julgue o leitor que o andei (ao meu pai) a enganar. Voltando ao percurso, importa referir que decidi rentabilizar o período de um mês de viagem concedido pelo passe visitando algumas das terras que se interpunham entre a "Antiga, Mui Nobre, Sempre Leal, Invicta e etc." e os quatro alvos primários, bem como alguns pontos de interesse situados nas imediações dos mesmos. A viagem propriamente dita teria início em Vigo, uma vez que o regulamento do inter-rail não permitia que os destemidos utilizadores do passe circulassem livremente nos comboios dos seus próprios países de nascimento. A lógica desta restrição sempre me intrigou mas nunca ao ponto de tentar perceber o motivo pelo qual havia sido criada. E não é agora, só porque estou a escrever esta treta, que vou investigar o assunto. Adiante, estava autorizado a fazer milhentos kilómetros (não gosto de escrever a palavra quilómetros, parece-me sempre que vai sair quilhões; por falar nisso, é quilhões ou colhões?) pela Europa fora mas não podia fazer na CP as 22 léguas que me separavam da fronteira natural entre Portugal e Espanha, conhecida como Rio Minho. Quem se lixou com esta curiosa regra “podes comer todas as gajas do teu prédio de 30 andares excepto a que vive no teu apartamento” foi um amigo, a quem cravei uma boleia até ao ponto de partida. O resumo da primeira etapa, entre Vigo e Barcelona, fica para quando me apetecer escrever o segundo capítulo.

(continua)

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