sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

O meu inter-rail; 3º capítulo: "mierdices"



Recapitulando: o cair da tarde pintava de laranja as austeras paredes da granítica cidade galega no momento em que… Paneleirice! Esta frase está carregada de paneleirice. Recapitulando a recapitulação: é fim da tarde em Vigo e acabo de entrar no comboio com destino a Barcelona. Carrego uma mochila de campismo e tenho no bolso das calças o bilhete de inter-rail, o tal que me foi vendido como “passe que permite andar gratuitamente durante um mês nos comboios de todos os países europeus excepto naquele em que nasceste”. Claro que não sou totalmente inocente e o gajo que mo vendeu (gajo que não é meu amigo, ao contrário do gajo que me deu boleia) sabia que eu sabia que ele sabia que nem todos os países europeus estavam contemplados. Bielorrússia e Ucrânia, só para citar dois, não estavam. Mas quantos dos nossos vizinhos que encontramos na fila do Pingo Doce sabem que a Bielorrússia e a Ucrânia pertencem à Europa? O Sr. Lemos do 3º esq. que trabalha nas Finanças e a D. Fátima do R/C que é secretária na Escola Secundária? Talvez. Quem sabe. É portanto justo dizer que estavam contemplados todos os países europeus que todos os portugueses conhecem como sendo países europeus, alguns países europeus que alguns portugueses conhecem como sendo países europeus (Bulgária e Roménia, por exemplo) e um país meio-europeu que 284 portugueses conhecem como sendo um país meio-europeu. Falo da Turquia, terra que me interessava muito e à qual queria chegar o mais rapidamente possível. Não contava por isso com as dificuldades técnicas, mais conhecidas por merdices, que me surgiram logo na viagem inicial. Mas voltemos um bocado atrás. Estou na carruagem que me serviu, de forma totalmente aleatória, de entrada para o comboio, e reparo que a mesma é constituída por várias cabines muito agradáveis, cada uma das quais contendo duas magníficas poltronas que se podem transformar em camas. Parece-me demasiado bom para ser verdade mas resolvo sentar-me numa delas com ar de banqueiro de investimento que por engano se vestiu às escuras no quarto do jardineiro*. Antes que tivesse tempo de pegar em qualquer coisa para ler ou num mapa para analisar** entra-me na cabine uma espanhola já velhota, totalmente aperaltada (já passava das 6 da tarde, hora a partir da qual todas as espanholas se apresentam com uma camada de maquilhagem que seria suficiente para tapar as rachadelas das paredes de todos os edifícios da Puerta del Sol) e que me começa a olhar como se eu fosse um jardineiro que se vestiu às escuras no seu próprio quarto. Atiro-lhe um buenas tardes manhosíssimo ao que ela responde com um pienso que está sentadito en el lugar que es mio ou outra coisa muito parecida que já não me lembro bem pois foi há muito tempo. Sabendo que aquela Duquesa de Alba que me observava atentamente deveria ter razão abandonei com celeridade o lugar, talvez temendo que lhe pudesse passar pela cabeça sentar-se no meu colo. Avanço pelo comboio fora e deparo-me com uma carruagem repleta de beliches e ocupada por muitos rapazes e raparigas que aparentavam ter partilhado comigo a escuridão do quarto e respectivo guarda-roupa do jardineiro. Todos tão obviamente interrailers*** que nem me senti envergonhado quando perguntei ao primeiro que olhou para mim se aquelas camas estavam todas ocupadas. E foi aí que estabeleci contacto com a 2ª dificuldade técnica, mais conhecida por merdice, daquele início de viagem. Pelos vistos aqueles beliches estavam sujeitos a marcação prévia, coisa que vos deve parecer óbvia e que eu próprio considero óbvia neste momento, mas que não tinha considerado óbvia antes daquela conversa. Já com a locomotiva em movimento arrasto a mochila para a carruagem seguinte, a primeira que apresentava uma disposição semelhante às da CP, e sento-me num lugar à sorte, completamente rendido à perspectiva de passar as 15 horas seguintes num estado de – riscar o que não interessa de acordo com a visão optimista ou pessimista que normalmente utiliza para interpretar a humanidade e os acontecimentos do quotidiano – semi-conforto / semi-desconforto. Como o comboio ia parar em todas as estações e apeadeiros que faziam parte da linha Vigo-Barcelona resolvi pegar no mapa de Espanha para me ir situando no percurso. Estava quase a chegar à fronteira de Castela e Leão quando aparece o Pica (com letra maiúscula, que aqui há respeito) e me pede o bilhete com uma voz de quem tinha passado o dia todo a comer serrim e a fumar daqueles Ducados que faziam o SG Filtro parecer tabaco para crianças. “Toma mi passe”, digo-lhe eu com cara simpática enquanto acrescento mentalmente um poderoso cabrón. “Donde tienes la reserva?”, pergunta-me o galego ou castelhano ou catalão ou o caralho. Pronto, estava armada a 3ª dificuldade técnica, mais conhecida por merdice, daquele início de viagem. “Que resierva, hombre?, io tengo uno daqueles passes que permiten andar gratuitamente durante um mês nos comboios de todos los países europeus excepto naquele em que has nascido!” Não era suficiente. Nas terras de Espanha era obrigatório, mesmo em inter-rail, fazer uma reserva antecipada de lugar nas bilheteiras das estações a troco de mil e tal pesetas. Aqui o vosso Aníbal não tinha a reserva e muito menos as pesetas pelo que teve, após um choradinho acompanhado de castanholas e juras de ignorância, de abandonar o comboio na estação seguinte, correr para um multibanco para levantar pesetas, correr para a bilheteira para reservar um lugar, correr para o comboio para seguir viagem e correr para o – letra maiúscula por favor – Pica para lhe agradecer muito, desejar-lhe imensas felicidades para toda a família e transmitir-lhe que os dias 14 de Agosto de 1385 e 1 de Dezembro de 1640 tinham sido os piores dias de toda a História de Portugal e que o Conde de Andeiro tinha agido correctamente ao papar a D. Leonor de Teles, encornando o Rei D. Fernando. A partir desse momento não ocorreram mais dificuldades técnicas dignas de registo e na manhã seguinte, depois de 15 horas sentado num lugar de mierda, cheguei a Barcelona.

(continua)




* o vestuário que utilizei durante a viagem foi de uma simplicidade extrema, verdadeira austeridade avant la lettre. Um par daquelas calças que se podem transformar em calções serviu para o mês inteiro (quase sempre utilizadas na forma de calções); eram escuras e não se notava (muito) a sujidade. Nos pés levava umas sapatilhas (sou do norte, não calço ténis; vocês, lisboetas, costumam ver na televisão os jogos de sapatilhas do Nadal?) e no tronco uma t-shirt (não se preocupem, ao contrário das calças, levei mais do que uma t-shirt; também levei alguns pares de meias e de cuecas). Na mochila transportava uma toalha de praia, uns chinelos, artigos de higiene, alguns livros, guias de viagem e mapas, uma caixa de paracetamol, dois pacotes de bolachas, uns calções de banho, uma segunda mochila de tamanho reduzido, um saco-cama, uns maços de tabaco (já não fumo mas na altura fumava) e uma sweat (era Verão, foi pouco utilizada). O cartão de crédito (do meu pai) e um pequeno maço de dólares (nos anos 90 o euro ainda estava a ser projectado; por falar nisso, bela merda de projecto que fizesteis, meus caralhos) estavam devidamente escondidos num bolso falso que a minha mãe ardilosamente criou no interior das calças que raríssimas vezes abandonaram as minhas pernas.


** não sei se já vos disse mas gosto muito de mapas; mapas-mundo, mapas de países, mapas de cidades, mapas de centros históricos, mapas políticos, mapas físicos, mapas demográficos, etc. Um´mapita sabe sempre bem. Brincadeira de palavras estúpida, gosto mesmo muito de mapas.              


*** é verdadeiramente impressionante a semelhança de todos aqueles que se encontram a fazer um inter-rail; suspeito que apenas nas paradas militares que ocorrem na Praça Kim Il-sung em Pyongyang poderemos encontrar pessoas tão parecidas umas com as outras. E a resposta é sim, a palavra interrailers usa-se neste meio.

Sem comentários:

Enviar um comentário