quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

O meu inter-rail; 4º capítulo: "Penetrar no Anillo"



“A oeste nada de novo”, dizia o escritor alemão de quem os nazis não gostavam. Ah, a literatura*, que sempre comandou os meus passos e os comanda uma vez mais neste pequeno percurso entre o comboio que acaba de chegar e a bilheteira que já lá se encontra! “Buenos dias, senhorita, faça-me aí uma reserva antecipada de lugar, a tal que é obrigatória apesar do meu “passe que permite andar gratuitamente durante um mês nos comboios de todos os países europeus excepto naquele em que nasceste”**. Pode ser para o primeiro coiso*** que me leve para leste, que eu já conheço a sua cidade e quero é chegar a Istambul”. O melhor que me arranjou foi um coiso ao fim da tarde destinado à fronteira com França, onde poderia mudar, sem grande espera, para um outro que me levaria até Nice. A ideia agradou-me bastante pois esta seria a segunda viagem a ter lugar durante a noite. Como também seria a segunda viagem a ter lugar durante o inter-rail, detectei, com brilhantismo, a possibilidade da existência de um padrão. Inspirado por motivos de natureza cultural, também conhecidos como “falta daquilo com que se compram melões”, comecei a idealizar um plano de austeridade assente em dormidas nos comboios. E o plano foi tão bem desenhado que a primeira vez que encostei o esqueleto a um colchão foi na Turquia, uma semana depois de ter saído de casa. Mas regressemos a Barcelona, onde teria de ocupar aproximadamente umas 8 horas. O que fazer? Numa visita anterior à Catalunha já tinha despachado o típico roteiro turístico (a distinção entre turista e viajante, essa questão melindrosa que tanto apoquenta os intelectuais, fica para depois, talvez para Roma) das Ramblas, Bairro Gótico, Camp Nou e obras do Gaudí, do Parque Güell à Casa Batlló, passando pela Santa Engrácia lá do sítio, de seu nome Templo Expiatório da Sagrada Família, uma enorme basílica flanqueada, se bem me recordo, por dois terrenos vazios com dimensão suficiente para a edificação de um shopping modernaço de grandes dimensões****. Alguns dos principais museus também já tinham sido vistos na última viagem e o único que me tinha deixado saudades, o Teatro-Museu Dalí, ficava a mais de 100 km da cidade (“Ah, mas ó Aníbal, não é suposto não se poder dizer nunca que um museu está visto uma vez que a soma de todos os pormenores e interpretações das obras expostas tende para o infinito obrigando por isso a impossíveis infinitas visitas para que tal fosse verdade?”; “Hum, interessante problemática! Antes de mais o meu muito obrigado pelo pertinente comentário. Quanto à questão em concreto, estimo bem que te fodas.”; “Ah, mas ó Aníbal, lembrei-me agora que estamos a falar de Barcelona, uma cidade onde os principais museus estão recheados de Cubismo, de Surrealismo, e de outras correntes da Arte Moderna, o que torna ainda mais relevante a multiplicidade interpretativa que evoquei!”; “Sim, sem dúvida. Felizmente, o “estimo bem que te fodas” está imune a divergências de interpretação.”).



“Museu Picasso” – se deseja conhecer as mais importantes obras deste artista,
este é um dos museus que não deve visitar



Nunca tinha assistido, para grande pena minha, a uma ópera no Gran Teatre del Liceu ou a um concerto no Palau de la Música Catalana, mas também não ia ser desta que o ia fazer em derivado a factos relacionados com o carácter diurno da estadia (se lá permanecesse para a noite não o faria na mesma em derivado a factos relacionados com o carácter andrajoso da vestimenta). Optei então, depois de largar a mochila num cacifo, por dedicar umas horas à zona olímpica de Montjuïc e aproveitar o resto do tempo para coçar os toma…, digo, observar o fluxo da humanidade e os magníficos candeeiros, sentado numa esplanada do Passeig de Gràcia.
A majestosa colina de Montjuïc, ponto nevrálgico dos Jogos Olímpicos de 1992, assume sem modéstia, do alto dos seus 170 metros de altitude, um olhar sobranceiro sobre a Cidade Condal. Agora sem merdas e com os exemplos que mereceis: lembrais-vos das imagens espectaculares proporcionadas pela modalidade de saltos para a água nos JO 92 e em posteriores Campeonatos do Mundo? Foi o olhar sobranceiro da Piscina Municipal de Montjuic que as permitiu. Mas por Deus, não façais confusão com as Piscinas Picornell onde decorreram as provas de natação e que também se situam em Montjuic apesar de não se conseguir ver, a partir das suas bancadas, a ponta de um corno da cidade.



Atenção: este gajo não está a saltar para as Piscinas Picornell




Além desses dois húmidos equipamentos, o “Anillo Olímpico” (este nome é tão pornográfico que até mete nojo mas, cariños, juro que não fui eu que o inventei) inclui ainda um conjunto de outras instalações desportivas das quais importa destacar o Estádio Olímpico, palco de variadíssimas actividades nos Jogos de 92, nomeadamente o espectacular momento em que um arqueiro acende a Pira Olímpica disparando uma flecha em chamas de um local tão distante que poderia ser incluído sem medo no conceito de “longe comó caralho”. Claro que as más línguas vieram logo dizer que o arqueiro tinha disparado para fora do Estádio e que a pira tinha sido acesa electronicamente, numa manobra de pura ilusão de massas combinada e ensaiada ao segundo. Apesar das más línguas estarem provavelmente correctas, desejo-lhes na mesma um destino à la João César Monteiro.


Antonio Rebollo prestes a “acender” a Pira Olímpica



De referir que o Estádio Olímpico de Montjuic foi construído há quase 100 anos e tinha pretensões a ser o palco principal dos Jogos Olímpicos de 1936. A candidatura foi perdida para Berlim mas, uma vez que a votação ocorreu antes da ascensão dos nazis ao poder, não me parece necessário que comeceis a apelidar de fascistas os ilustres membros do Comité Olímpico Internacional. Duvido, porém, que consigais resistir a chamar-me fascista quando vos disser que o brutalmente nazi Estádio Olímpico de Berlim mete num bolso das moedas o parente afastado de Barcelona. E que uns Jogos em Montjuic na década de 30 não teriam uma Riefenstahl atrás da câmara de filmar. Adiante, que a estética totalitária é um fantasma à solta no meu sistema nervoso central. Finalizo o relato da minha rápida penetração no “Anillo Olímpico” transmitindo o que senti quando vi a “Torre de Telecomunicaciones” plantada no local pelo Arquitecto Santiago Calatrava: puta que pariu o filho da puta do megalómano! Foi isto que senti e que até terei dito em voz alta perante o enorme piçalho circuncisado que o valenciano ergueu mesmo no meio do Anillo, quase de certeza apoiado em sapatas de fundação armadas com as pastas de arquivo das facturas relacionadas com as derrapagens orçamentais*****. 


 
“Enorme Piçalho Circuncisado”, também conhecido como
“Torre de Telecomunicaciones de Montjuïc”



Terminada a visita desci ao centro da cidade, comi um McQualquerCoisa, bebi uma cerveja ranhosa em frente a um dos candeeiros pretendidos, cocei os…, perdão, observei o fluxo da humanidade e, no final do dia, enfiei-me no comboio com destino à fronteira francesa. Passei por Figueres (terra do Salvador Dalí e do tal museu que me deixou saudades) e duas horas depois fui largado em Cerbère, já do lado francês, onde aguardei mais umas horas pelo outro coiso que me deixaria em Nice na manhã seguinte. A troca de comboios deveu-se à diferente bitola utilizada nos dois países (Ibérica em Espanha, Internacional em França), o que implica que entre Portbou (Catalunha) e Cerbère (Languedoque-Rossilhão) coexistam duas linhas diferentes. Poderia explicar esta treta com mais detalhe mas, uma vez que no recente debate sobre o TGV quase todos os portugueses se mostraram especialistas em bitolas, penso não ser necessário. Acrescento apenas que não me lembro de ter trocado de comboio na fronteira quando regressei. Tal pode ser explicado por ter sido efectuada numa das estações uma operação de ajustamento dos rodados das carruagens ou por eu me encontrar em tal estado de exaustão que tenha sido transportado ao colo de um comboio para outro depois de ter sido sodomizado por quatro revisores, dois maquinistas, um guarda-freio  e um chefe de estação. Esperemos que tenham ajustado o caralho dos rodados.     



* copyright ou o catano daqueles gajos do Canal Q

** a repetição desta frase provoca-me uma confusão de sentimentos, como se visse o Pedro Silva Pereira a engasgar-se com o meu James Martin's 30 anos. Por um lado parece-me que pode servir como um ponto de referência comum aos vários textos uma vez que eles são publicados em alturas diferentes. Por outro lado já estou farto dela e nunca mais a escrevo.     
[Obviamente também reflecte a influência (a sinceridade é muito bonita) que o ensaio do David Foster Wallace sobre o Federer exerce sobre a minha pena; a continuada repetição, no mesmo texto, da expressão "estilo moderno dos potentes jogadores de fundo do campo", não me tendo enjoado em relação ao autor, acabou por me enjoar em relação aos autores que nunca se tinham lembrado desse truque].

*** aqui devia escrever “comboio” mas ainda estou no início do texto e já escrevi “comboio” uma vez e “comboios” outra; podia escrever “locomotiva” mas estaria tecnicamente errado; podia escrever “meio de transporte sobre carris” mas ficaria ridículo; vou deixar o “coiso”. 

**** Belmiro, não sei o que esperas para reunir com o Alcaide.    

***** Estou em condições de afirmar, após ter visto ao vivo a sua obra na cidade de Valência, que a humanidade já não era sujeita a um gajo com tamanha mania das grandezas desde o tempo de Ramsés II. Dada a dimensão, as formas e os materiais usados nas suas construções, é até de estranhar que os desvios nos custos não sejam maiores. Mas devo acrescentar que existe uma surpreendente delicadeza nas suas pontes e no “Turning Torso” de Malmö que contrasta com o gigantismo da maioria das outras obras.

 

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