quarta-feira, 9 de abril de 2014

O meu inter-rail; 6º capítulo: "O gastrocnémio"



De regresso a Nice, desejava utilizar no meu enriquecimento cultural as poucas horas que ainda tinha disponíveis até ao embarque no comboio nocturno para Roma. Mas o que fazer numa cidade em que a principal praça se chama Masséna, em homenagem ao famoso Marechal que andou a fazer turismo militar no nosso país desde o momento em que o invadiu pela 3ª vez até ao momento em que começou a passar fome na zona de Torres Vedras*? Mesmo sendo verdade que devo a esse franciú o “fui guerrilheiro, fui guerrilheiro, fui guerrilheiro no Buçaco / levei um tiro no cu, ainda tenho lá o buraco”, a primeira música que aprendi no recreio da escola primária e que ainda hoje se mantém no meu coração, não me pareceu adequado, por respeito a Suas Altezas Reais D. Maria I e D. João VI, desfrutar das variadas infraestruturas da Place. Num momento de crueldade, ainda me passou pela cabeça sentar-me numa esplanada e pedir um Bife Wellington mas o risco de o garçon**, por manifesta ignorância da sua História, não se sentir ofendido, era demasiado grande para os preços médios da zona.



Este senhor, de seu nome Arthur Wellesley e de seu título Duque de Wellington, atestou na marmita de André Masséna em território português antes de cilindrar o seu superior hierárquico, Napoleão, na Batalha de Waterloo. Curiosamente, repousa num túmulo londrino bastante mais modesto do que o gigante mausoléu parisiense do corso Bonaparte. Sempre “à grande e à francesa” estes baguettes do caralho


Decidi então avançar para o mar, pensando em meter-me na água mais uma vez, dar uma volta na Promenade des Anglais e avaliar no terreno as condições objectivas para o desenvolvimento do projecto “Depurar o intestino no Hôtel Negresco”***. Infelizmente, uns minutos depois, fui atingido pela mão pesada da decepção! A praia é assim tipo uma bela merda e a baía está permanentemente a ser sobrevoada por aviões despejados pelo movimentado aeroporto situado numa das pontas da Promenade. O mar tem o aspecto típico daquela zona, ou seja, maravilhoso, mas para lá chegar é necessário atravessar um areal que em vez de areia tem um godo (será um godeal?) que escavaca os pés de todos aqueles que não andam calçados com aquelas sandálias horrorosas de plástico ou de borracha ou o caralho e que eliminam todo e qualquer resquício de fantasia à humanidade em geral e aos fetichistas tarados em particular. Tentem só imaginar uma praia e um calçadão repletos de gajos e gajas nestes preparos:




Conseguiram? Agora fechem o saco de enjoo com cuidado, deitem-no fora num caixote do lixo e regressem aqui para acabarem de ler esta treta. Como podem adivinhar, fugi daquele inferno à toute vitesse. Passei numa rua comercial do centro para ver umas gajas de tacão alto que me tirassem o mau gosto da boca, recolhi a mochila que tinha deixado pela manhã nos cacifos da gare e sentei-me a descansar enquanto esperava pelo comboio que me deixaria em Roma na madrugada seguinte. Perante as dezenas de pessoas que se encontravam no recinto, lamentei-me da impossibilidade de conseguir desenvolver com um local uma conversa que tivesse início com uma pergunta minha (“as vossas praias não são de areia! o que é aquilo?”), à qual se seguiria a resposta do francês (“pois não, são de godo”), à qual eu replicaria com um sonoro “anda cá que já te fodo”, mas acabei por ultrapassar esse desgosto e entrei na carruagem em paz.

O calor dentro da mesma era totalmente insuportável, fruto de um dia inteiro a armazenar, através da chapa, o sol da canícula mediterrânica. Pedi a todos os santos que fizessem com que a locomotiva arrancasse depressa, permitindo-me aproveitar alguma da aragem que entrasse pelas janelas para começar a respirar normalmente mas, ainda antes desse momento, vi o meu compartimento invadido por duas pessoas. Primeiro entrou um italiano com pinta de italiano, patilhas aparadas em forma de lança pretoriana, pêra e bigode à valete de espadas, e moreno como a pele dos tomates (a pele dos meus tomates pois a pele dos tomates do gajo ainda devia ser mais escura). Devia ter a minha idade e estava a terminar uma viagem de duas semanas, regressando à sua casa em Pisa. Uns minutos depois, encontrando-me já eu a entabular negociações latinas relativas à divisão e organização do espaço a bordo, ouve-se a porta a correr e avança uma loira não muito loira, precedida por um par de mamas que entrou no compartimento um segundo antes do nariz. Uma proeza assinalável visto que deu entrada apressadamente e que o nariz nem era pequeno. Bastou-me olhar para a cara do italiano, que nesse momento se encontrava a olhar para a minha, para perceber que estava a pensar o mesmo que eu: “este calçãozinho e este decote recheados com uma gaja tão boa não se vão atrever a passar uma noite numa cabine fechada (por uma porta e cortinas) com dois malcheirosos totalmente desconhecidos”. Estranhamente, pelo menos sob o ponto de vista de homens que tinham acumulado 20 anos de experiência de vida a sul do paralelo 45, a loira não muito loira não só não fugiu como, sem um pingo de vergonha, se intrometeu rapidamente nas negociações em curso, atrevendo-se mesmo a opinar sobre o assunto com uma postura que poderíamos classificar de inter pares! “Ai a filha da puta!” - pensei eu enquanto lhe tentava analisar o rego das mamas, ciente de que o italiano lhe estava a tentar analisar o rego do cu -, “ninguém ensinou a esta gaja, lá na merda da terra dela, as tímidas maneiras que se pretendem?!”. Pelos vistos vinha da Holanda, um país que fica a norte do paralelo 50, perigosamente próximo do Segundo Círculo do Inferno e do respectivo vale onde é castigada a luxúria.


À esquerda podemos ver o Capitão Thomas Bartholomew “Red” a preparar-se para dirigir um poderoso “seu filho de uma puta vesga das sarjetas de Amesterdão” ao comerciante holandês que se encontra a tomar banho; a fama de libertinagem dos Países Baixos já é antiga.
Fotograma de Pirates (1986) de Roman Polanski


Concluídos os trabalhos preparatórios, já com o comboio em andamento e com uma suave aragem a dissipar o cheiro a perfume da fêmea e o cheiro a testosterona dos machos, ficou decidido que, na hora de dormir e reclinados todos os assentos, o italiano ficaria deitado junto à porta, para poder sair mais ou menos a meio da viagem, em Pisa, sem incomodar ninguém; eu esticar-me-ia paralelamente à janela, para poder fumar uns cigarros em caso de ansiedade tabágica; e a holandesa, com o seu calçãozinho e decote, ficaria no meio. Também me pareceu na altura que assumida a necessidade de deixar o leito da porta para o italiano, seriam por ele utilizadas todas as técnicas argumentativas da Cosa Nostra e da Camorra com vista a impedir que ficasse a moça à janela e eu no meio dos dois a fazer de Rubicão. Talvez pairasse na cabeça do cretino pisano alguma sombra de desejo de mostrar à formosa viajante a inclinada torre. Demasiados jogos e fantasias e fodas mentais para machos que à boa maneira latina estavam muito mais envergonhados do que a sacaninha loira não muito loira. Felizmente, a simpatia e o à-vontade que mostrou foram suficientes para quebrar o gelo todo, dando origem a uma viagem quase tão boa como a curva que apresentava entre o bíceps femoral**** e o gastrocnémio*****. Onze horas após a saída de Nice, preenchidas a conversar, a dormir, a fumar, a dizer adeus ao italiano em Pisa e a comer panini que nos venderam nas estações através da janela do compartimento, cheguei a Termini, no centro de Roma.

   
(continua)


* corre o mito de que todos os estrangeiros saem de Portugal a elogiar a nossa gastronomia mas, na realidade, estes foderam-se.

** em França nunca chamem garçon a um garçon; ficam ofendidos, tem de se chamar monsieur.

*** era mais ou menos inevitável que num destes dias teríamos de ter esta conversa de merda. Afinal, como se satisfazem, num inter-rail, as necessidades fisiológicas masculinas? Ou seja todas excepto a micção uma vez que um homem não perde tempo a identificar e analisar as condicionantes desta actividade. Até porque, a bem dizer, não existem condicionantes nenhumas, mija-se em qualquer lado e ponto final. Mas dar uma cagada… bem, dar uma cagada nem sempre é fácil para um viajante deste tipo, principalmente quando o viajante decide dormir nos comboios e não em edifícios. As casas de banho das estações são uma opção péssima: umas não estão limpas, outras estão limpas mas utilizam o sistema “à caçador”, outras até, estando limpas e possuindo retretes normais, encontram-se a tal temperatura durante o Verão que uma pessoa fica totalmente encharcada ou chega mesmo a desfalecer mal tenha de efectuar um esforço mais acentuado ao nível dos esfíncteres. As dos comboios propriamente ditos não são melhores, conjugando o calor (talvez seja boa ideia recordar que este é um relato dos anos 90 e nessa altura o ar-condicionado não era omnipresente) com a exiguidade de espaço e a falta de higiene. Já para não falar dos bruscos e acentuados movimentos das carruagens e da magna e clássica questão das paragens (é de bom tom, aquando da inexistência de mecanismos de retenção das retretes, não evacuar durante as paragens dos comboios nas estações. No entanto, o desconhecimento sobre as linhas e horários pode levar a que, iniciando inadvertidamente o acto poucos minutos antes de uma escala, não se consiga interromper o mesmo no momento da total imobilização da locomotiva! Estes infelizes acasos originam desagradáveis visões (visões de merda, literalmente) aos passageiros que se encontram nas plataformas das estações no momento em que o comboio retoma a marcha).
Restam as casas de banhos dos sítios onde se vai parando para comer (sítios rafeiros, logo, casas de banho rafeiras) e as incursões clandestinas em hotéis de 5 estrelas mundialmente famosos, onde podemos purgar o nosso interior em sanitários caracterizados por elevadíssimos padrões de higiene, conforto e bom gosto. E desfrutando ainda da mais-valia adicional de conhecer por dentro edifícios de grande valor estético.       

**** músculo da parte posterior da coxa

***** músculo da barriga da perna; uma maravilha para os escanções de gajas

 

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